Análise Jurídica e Riscos da Substituição do BL Físico pelo e-BL
- Introdução
O conhecimento de embarque, também conhecido como Bill of Lading (BL), é um dos documentos mais relevantes no comércio marítimo internacional. Ele serve como recibo da mercadoria embarcada, prova do contrato de transporte e título de crédito, regido pelo Código Comercial, Código Civil e pelo Regulamento Aduaneiro.
Nos últimos anos, discute-se a substituição do BL físico pelo Conhecimento de Embarque Eletrônico (e-BL), sob o argumento de que a digitalização traria maior agilidade e segurança às operações. Contudo, tal inovação não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, pois contraria os fundamentos legais e principiológicos que sustentam a validade e a circulação do título cartular.
- Natureza Jurídica do Conhecimento de Embarque
O BL possui natureza jurídica tríplice:
- Recibo da mercadoria embarcada;
- Prova do contrato de transporte marítimo;
- Título de crédito representativo da mercadoria transportada.
Como título de crédito, o BL segue os princípios da literalidade, autonomia e cartularidade, pilares do direito cambiário. Sua força executiva decorre do Código Comercial (arts. 566, 586 e 587), que o reconhece como título à ordem, transferível mediante endosso e entrega física do documento.
O Código Civil também reforça a natureza creditícia e transferível do BL:
- 754: As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.
- 893: A transferência do título de crédito implica a de todos os direitos que lhe são inerentes.
- 894: O portador de título representativo de mercadoria tem o direito de transferi-lo, conforme as normas que regulam sua circulação, ou de receber a mercadoria independentemente de formalidades, além da entrega do título devidamente quitado.
Esses dispositivos deixam claro que o BL é título de crédito cuja circulação depende do suporte físico e da tradição material, sendo o endosso eletrônico, por ausência de previsão legal específica, juridicamente inválido.
- Cartularidade como Elemento Essencial
A cartularidade é o princípio que garante ao portador legítimo o direito de exercer, mediante posse do documento, os direitos nele contidos. Sem lei específica que equipare juridicamente o documento eletrônico ao título cartular — como ocorre apenas com a duplicata eletrônica —, o e-BL carece de força executiva e de segurança jurídica.
O BL físico é indispensável para legitimação do portador e para exercício dos direitos de crédito e propriedade sobre a mercadoria nele representada. Sua materialidade é condição essencial para transferência por endosso e tradição, conforme determina a legislação vigente.
- Incompatibilidade do e-BL com os Princípios Cambiários
A adoção do e-BL viola princípios estruturantes do direito cambiário:
- Cartularidade: Ausência de suporte físico, impossibilitando transferência por tradição e legitimação pela posse.
- Literalidade: A multiplicidade de plataformas e assinaturas digitais fragiliza a integridade do conteúdo.
- Autonomia: Sem controle único do documento, perde-se a segurança na cadeia de endossos e a proteção do portador de boa-fé.
Esses princípios não são meras formalidades, mas garantias materiais da segurança jurídica que sustentam a circulação de mercadorias e créditos no comércio internacional.
- Riscos Aduaneiros e Bancários do e-BL
O Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009, art. 556) determina que os conhecimentos de carga sejam regidos pela legislação comercial e civil, incluindo requisitos de cartularidade e formalidade.
A substituição do documento físico por eletrônico gera riscos como:
- Dificuldade de comprovação de autenticidade e titularidade;
- Impossibilidade de endosso legítimo;
- Risco de duplicidade e fraude documental;
- Insegurança probatória perante bancos e aduanas.
As instituições financeiras e a Câmara de Comércio Internacional (UCP 600) ainda exigem apresentação física do BL para liberar operações de câmbio e cartas de crédito, inviabilizando a aceitação do e-BL no sistema financeiro internacional.
- Ilegalidade Parcial da IN/SRF nº 2.102/2022
A Instrução Normativa SRF nº 2.102, de 12 de setembro de 2022, ao tratar do Sistema Mercante e do módulo aquaviário do Siscomex, excedeu seu poder regulamentar ao instituir, de forma implícita, a figura do endosso eletrônico do conhecimento de carga — instituto sem previsão legal.
O dispositivo estabelece:
Art. 2º, § 2º: O interveniente prestará as informações mediante uso de certificação digital […] notadamente quanto a: III – endosso eletrônico do conhecimento de carga.
Art. 18: Não poderá ser solicitado ou registrado benefício de AFRMM no Sistema Mercante para as cargas objeto de endosso pendente de aceite.
Anexo Único, item 17: “Endosso eletrônico (modal marítimo) – procedimento por meio do qual o Consignatário indicado em um Conhecimento de Embarque transfere eletronicamente, no Sistema Mercante, a titularidade da carga para outro consignatário.”
A previsão de endosso eletrônico em ato infralegal representa inovação normativa indevida, criando efeitos jurídicos próprios de título de crédito — matéria reservada à lei formal, conforme o art. 22, I, da Constituição Federal.
Tal disposição contraria os princípios da legalidade e da hierarquia das normas, além de colidir com o Código Civil (arts. 754, 893 e 894) e o Código Comercial (arts. 566, 586 e 587), que exigem endosso físico e tradição do título.
- Responsabilidade Civil e Criminal do Agente de Carga
O agente de carga, ao emitir, manipular ou intermediar Conhecimentos de Embarque, atua como fiel depositário e mandatário no processo de transporte e representação documental. Essa posição implica deveres jurídicos de guarda, veracidade e regularidade documental, cuja violação pode ensejar responsabilidade civil e criminal.
Nos termos do art. 186 do Código Civil, quem, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, comete ato ilícito, sujeitando-se à reparação integral prevista no art. 927. Assim, o agente que emite ou utiliza título eletrônico não previsto em lei, ou realiza endosso eletrônico sem respaldo legal, incorre em ato ilícito por causar prejuízo patrimonial, tributário ou comercial ao verdadeiro titular da carga ou a terceiros de boa-fé.
Além disso, a conduta pode configurar ilícitos penais, tais como falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal), estelionato (art. 171) e apropriação indébita (art. 168), se o agente se utilizar da mercadoria ou de seus documentos para fins próprios ou alheios sem autorização do legítimo proprietário.
7-A. Complemento Normativo: IN/SRF nº 680/2006 – Artigo 18, § 4º
A Instrução Normativa SRF nº 680, de 2 de outubro de 2006, também confirma a necessidade de suporte físico e documental na circulação dos conhecimentos de carga. Dispõe o artigo 18, § 4º, que:
“A transferência de titularidade de mercadoria de procedência estrangeira por endosso no conhecimento de carga somente será admitida mediante a comprovação documental da respectiva transação comercial.”
Tal dispositivo reforça a natureza cartular e creditícia do Conhecimento de Embarque, exigindo que a transferência de propriedade se realize por endosso físico e mediante prova documental da operação comercial subjacente. Assim, qualquer tentativa de instituir endosso eletrônico sem base legal afronta não apenas o Código Comercial e o Código Civil, mas também a própria regulamentação aduaneira da Receita Federal do Brasil, que vincula a validade do endosso à documentação física e comprobatória da transação.
- Conclusão
O Conhecimento de Embarque é, por essência, um título de crédito físico e cartular, cuja validade e circulação dependem da posse material e do endosso real do documento.
O chamado e-BL, assim como o endosso eletrônico previsto na IN/SRF nº 2.102/2022, não possuem amparo legal e violam os princípios fundamentais do direito cambiário. Além disso, criam insegurança jurídica e operacional, comprometendo a credibilidade do comércio exterior brasileiro e expondo agentes e operadores à responsabilidade civil e criminal.
Enquanto não houver lei específica que discipline e garanta a validade jurídica dos títulos eletrônicos de transporte marítimo, o BL físico permanece como única forma legalmente válida e eficaz de representação da mercadoria e de legitimação da titularidade no comércio internacional.
